12/05/2010

Peça Teatral

O Sexto Grito

Narrador: Num dos momentos do momento mais escuro da noite sua busca teve início, o primeiro passo da grande jornada havia sido dado sem rumo certo, apenas a certeza de se seguir em frente sempre como único caminho a ser seguido, e o fazia não sem medo, mas com a coragem de enfrentá-lo frente-a-frente.
No principio era só, sempre se é só no principio, e mesmo com mãos trêmulas e suor frio caminhava sem mapa à espera do desconhecido, mostrando o real sentido da coragem.
Érdna: Parou o ponteiro, parou o ponteiro, o relógio está lento parece não passar o tempo a te esperar, onde estarão teus passos largos aprisionados pelo mesmo tempo lento dos apaixonados? Quando estamos juntos este mesmo tempo parece se unir ao vento sem querer parar, e nossos corpos juntos abraçados, sem querer são forçados a se separar. E novamente o tempo, com desdém e sem lamentos, volta a ficar lento a nos torturar. E o relógio seu escravo, por ele é forçado a parar, parou o ponteiro... (canta com um grande relógio em suas mãos, que olha várias vezes)
Carlos: Conheço sua dor de escravo, caro desconhecido, como você sinto o peso das correntes das horas me aprisionando sem piedade alguma a seus desejos egoístas, ora lento ora apressado, contrariando nossas necessidades e desejos. Como você sinto falta de minha amada e sofro com isso pela distância que não pode ser percorrida com passos.
Érdna: Então é meu amigo, se sofre como sofro temos algo em comum e por isso um laço que nos une na dor. Chamo-me Érdna, e qual o seu nome?
Carlos: Carlos, e sinto enorme prazer em conhecê-lo e ao mesmo tempo saber que não sou o único a sentir esta dor, pois já me sentia abandonado em meu sofrimento, incapaz de ser compreendido por qualquer outra pessoa.
Érdna: E o que te aflige? Espera por quem ama como eu?
Carlos: Na realidade corro contra o tempo para resgatar minha amada dos braços do tirano Ehflonn, que a raptou ainda esta noite há algumas horas e pretende levá-la para a região dos desaparecidos.
Érdna: Então faz piada com meu sofrimento, zombando da tristeza de um infeliz prisioneiro? (furioso) Que te fiz para merecer tamanha provocação, fazendo-se de louco mentiroso que acredita no impossível?
Carlos: É a mais pura verdade, vou resgatá-la nem que seja a última coisa que faça enquanto vivo, e quanto ao resto, sempre fui descrente do impossível.
Érdna: O primeiro grito foi dado, faltam cinco, e quando o sexto grito de Ehflonn por todos os povos for ouvido será tarde demais para resgatá-la, pois já terão atravessado a divisa dos que ficam e dos que vão. E você nem ao menos sabe em que direção seguir, assim como a maioria dos que vivem nestas terras.
Carlos: Encontrarei quem possa me ajudar e me vingarei do tirano raptor, seja ele ou não o soberano destas terras que mal conheço, conhecendo mais que o suficiente.
Érdna: Então o apóio por ver a coragem em seus olhos e que não desistirá tão fácil nem tão difícil, lute contra o tempo (atira o relógio ao chão, quebrando-o) e vença o tempo por todos nós, procure o que sabe do espinho no vale dos suicidas, talvez ele possa ajudá-lo por saber de muitas coisas, basta seguir esta trilha para encontrá-lo. Corra amigo, corra! (olha os estilhaços do relógio no chão) Que horas são, quanto tempo falta para ver novamente minha amada? (ajoelha-se e recolhe o que sobrou do relógio, tentando ver as horas. Carlos sai correndo) Que horas são?
Narrador: Ainda só após um pequeno contato com quem conhecia sua dor, Carlos segue em busca de ajuda sem saber o que encontrará e sem ao menos refletir sobre sua situação, como acontece com tantos em situação semelhante. Não posso culpá-lo pelo fato de se deixar tomar pelo desespero que o levou ao labirinto, nem pela escolha de viver novamente sua vida.
Carlos: (correndo pela trilha depara-se com um grande espelho, e seu reflexo, com sua própria voz, começa a falar) Não faça isso, não procure o que sabe do espinho, ele não poderá ajudá-lo.
Carlos: Como não? Meu amigo me aconselhou a procurá-lo dizendo que ele poderia me ajudar por saber de muitas coisas, e talvez até saiba a direção que devo seguir para encontrar a região dos desaparecidos antes do último grito. É o que farei!
Reflexo: Realmente ele sabe sobre muitas coisas, mas nenhuma que interesse a seu objetivo pelo preço que será cobrado, se ele convencê-lo a usar o espinho você se tornará um escravo de seu conhecimento e isso não o ajudará, e posso afirmar que ele sempre encontra um meio de convencer os outros a fazerem o que ele quer.
Carlos: É um risco que devo correr, não tenho outra escolha e nem tempo (nisso ouve-se o segundo grito de Ehflonn, como um sussurro do vento: Ana, Ana...), o segundo grito, tenho que correr.
Reflexo: Espere, retire um espinho deste espinheiro e leve-o com você, e não se esqueça de ser forte. (Carlos retira um espinho e corre)
(Chegando ao vale dos suicidas ele pára, cansado da corrida, e se depara com várias pessoas agachadas furando o pulso com um espinho, alguns correm na direção oposta, outros permanecem como estão)
Carlos: (aproximando-se de um desses) – Onde encontro o que sabe do espinho? Ele está por aqui?
Suicida I: É amigo ou inimigo? Não posso dizer sem saber.
Suicida II: (aproximando-se) – Quem é esse aí? O que ele quer?
Suicida I: Ele procura o que sabe.
Suicida II: Você é amigo ou inimigo que não sairá mais daqui?
Carlos: Sou alguém que precisa da ajuda dele, só isso.
Suicida I: Precisa da ajuda dele é? (rindo). É, com certeza ele pode ajudar. (sai andando) Me segue sua lesma (diz irritado e Carlos o segue).
Suicida I: (chamando) Odnan, Odnan, tem mais um aqui pra ajudar (ri).
Odnan: Deixa ele aí e volta pro vale logo, seu merda. (olhando-o de cima a baixo, rodeando-o) Então você precisa de ajuda, e como posso ajudá-lo? Quer um espinho pra diminuir a dor?
Carlos: Não, quero apenas uma informação, soube que você sabe de muita coisa.
Odnan: Sim, sei de muita coisa, mas preciso de algo em troca para ajudá-lo, antes de qualquer coisa, só pra que você saiba como as coisas funcionam por aqui.
Carlos: Eu imaginava isso.
Odnan: E o que é que você quer saber?
Carlos: Onde fica a região dos desaparecidos, onde habita Ehflonn.
Odnan: (rindo) Certo, certo, quer saber sobre a localização da morada de Ehflonn, tá. E você acha por acaso que eu sei?(irritado). Seu aventureirozinho de merda, vem tomar o meu tempo com idiotices.
Carlos: Dou o que você quiser em troca de uma informação qualquer que me ajude a encontrar o que procuro.
Odnan: Certo, mostre-me seu pulso esquerdo, é está intacto. Acho que sei de alguém que pode ajudá-lo e falo pra você por apenas dez gotas de seu sangue. Feito?
Carlos: Sim, empreste-me um canivete, pois tenho pressa em minha busca.
Odnan: Não, não é tão simples assim, deverá furar seu pulso com o espinho que vou buscar rapidinho, já que tem tanta pressa não é?
Carlos: Então vá logo, por favor.
(Odnan sai e, durante sua ausência, ouve-se o terceiro grito de Ehflon, os suicidas dançan ao seu redor uma dança estranha enquanto imitam o grito: Ana, Ana... até partirem poucos segundos antes do retorno do que sabe do espinho).
Odnan: Aqui está (entrega o espinho com uma mão e com a outra uma pequena garrafa), deixe dez gotas de seu sangue nesta garrafa e te direi o que sei.
Carlos: Pode me deixar sozinho por um momento para eu fazer isso?
Odnan: Mas é claro, se você está com... vergonha (diz com ironia e sai).
Carlos: (joga o espinho e retira do bolso aquele que havia pegado no espinheiro junto ao reflexo, fura o pulso e deixa as dez gotas caírem na garrafa). Pronto Odnan, aqui está (Odnan se aproxima e Carlos levanta-se) agora me diga o que quero saber.
Odnan: Com todo o prazer: vê aquelas três árvores naquele monte? Chegando lá siga a trilha que começa na do meio até encontrar o ajoelhado, ele era um dos meus servos e quis atravessar a divisa antes de sua hora, mas Ehflonn o baniu de lá e agora ele permanece ajoelhado em nome de seu “arrependimento” (ri) pobre coitado. Agora vá, se conseguir sair daqui (ri).
Carlos: (sai, atravessando o vale)
Narrador: Após os primeiros passos de sua busca, Carlos já não conseguia pensar em outra coisa a não ser em sua amada e seu resgate, e isso se transformou em obsessão descontrolada pelo acréscimo de outras recordações anteriores. Assim como todos ele tinha opções variadas, mas a dor da perda da garota que amava cobria seus olhos a todas as alternativas possíveis, o que o fez enxergar apenas uma escolha e seu passo seguinte foi o de cancelar aquilo que não lhe agradava mais. Havia resolvido apenas viver novamente a sua vida. (escuta-se o grito de Carlos e um tiro: Ana...)
Carlos: (encontrando o ajoelhado) Creio ser você o único que possa me ajudar no momento (nisso ouve-se o quarto grito: Ana, Ana...) e tenho pressa, já que meu tempo está se esgotando.
Ajoelhado: Não poderá resgatá-la, é a vontade de Ehflonn e nada pode ser feito a respeito disso.
Carlos: Mas ela é muito nova para partir e eu muito novo para viver sem ela, e não será possível continuar sozinho, pois me sinto muito fraco sem a presença e o amor dela. Muito vazio. (chorando) Eu a amo mais que tudo nesta vida, ela é a minha vida, e agora ela se foi.
Ajoelhado: Não podemos entender os desígnios de Ehflonn, mas tudo o que ele faz tem um motivo e toda causa tem seu efeito, coisas ruins podem acarretar coisas boas e vice-versa, e a nós cabe apenas a espera. Apenas a espera.
Carlos: Não vou esperar que tudo melhore com o tempo da mesma forma que não vou esperar pelo último grito de Ehflonn, apenas peço sua ajuda para poder encerrar minha busca e ter minha vida de volta.
Ajoelhado: Vejo que é um rapaz persistente, mas isso nem sempre é bom se não houver controle e um dia você verá isso, um dia sempre vemos o que deve ser visto. Vou ajudá-lo por apreciar seu amor, mas o alerto que isso apenas servirá para você ver que não se pode mudar o que está destinado a acontecer. Seu tempo é curto e a noite se aproxima, siga o sol até o anoitecer e quando for noite siga a lua sem se importar com a direção que ela leva, ao amanhecer terá chegado à divisa. Antes, ao encontrar a Senhora das Multidões, escute com atenção o que ela disser, e só depois siga em frente. Agora vá. (Carlos parte e o ajoelhado permanece nessa posição, olhando-o partir com um braço levantado em sinal de despedida)
Senhora das Multidões: (de frente para o público) Nem sempre ouvimos das vozes o que queremos ouvir, pois não é nossa voz.
E, às vezes, não ouvimos das vozes o que queremos ouvir, mesmo sendo nossa voz, pois às vezes dizemos o que sabemos sem nos darmos conta de que sabemos.
Nem sempre o coração segue a razão, pois a razão, muitas vezes, não tem sentimento.
E nem sempre a razão segue o coração, pois o coração, muitas vezes, age por impulso.
No meio de tudo ficamos nós, confusos e desnorteados, pois não sabemos ouvir.
Carlos: (ajoelhado) Sem saber ouvir, sem saber qual voz devemos seguir, o que fazemos, grande Senhora, para que nossa vida não caia no caos profundo dos vários erros cometidos pela ignorância?
Senhora: Escolher entre o ouvido da razão e o ouvido do coração aquele que nos guiará para o caminho que devemos seguir.
Carlos: E se fizermos a escolha errada, perderemos nosso tempo no caminho errado?
Senhora: Não meu querido, o tempo nunca é perdido e sim acrescentado se fizermos o que achamos ser o certo. Além disso, não devemos esquecer que nossos passos podem nos levar aonde desejarmos não importando o caminho em que estamos, e cedo ou tarde nosso caminho nos é revelado. Siga o seu agora, pois o tempo ainda não parou. (Carlos sai)
(sozinho no palco Carlos vê em relances Ehflon com Ana sobre seu ombro sempre de costas em todas as direções: nas laterais, atrás e na frente do palco, sumindo e aparecendo novamente)
Carlos: Volte Ehflon, e me enfrente cara-a-cara seu covarde, você pagará pelo sofrimento que me causou seu desgraçado. Devolva-me minha amada, devolva-a, devolva-a agora!
Narrador: (frente-a-frente com ele) Deve aceitar os acontecimentos e seguir em frente Carlos, pois sua vida continua (ouve-se o quinto grito: Ana, Ana...) e o seu dia de partir chegará, assim como o de Ana, assim como o de todos nós. Pessoas sofrerão com sua partida da mesma forma que sofre. Você deseja que elas se entreguem totalmente ao sofrimento como você está fazendo?
Carlos: Não, mas ela é tudo que me resta de bom, e sem ela não há esperança para mim, entende? Já perdi meus pais e meu irmão num trágico acidente, não posso perdê-la também, não agora que mais preciso.
Narrador: Você é capaz de superar sua perda e continuar vivendo, ela fará falta certamente, mas a vida é imprevisível, coisas boas acontecem também todos os dias, basta abrir os olhos para elas.
Carlos: Não vou perdê-la, não deixarei Ehflonn tirá-la de mim por simples capricho, o sexto grito ainda não foi dado. Vou encontrá-la antes que ele atravesse a divisa e tomá-la de volta em meus braços. (o narrador sai e Carlos continua andando até que Odnan surge com vários suicidas)
Odnan: Achou que poderia me passar para trás, seu imbecil? (dá um soco e Carlos cai)Achou que eu era idiota?
Carlos: Deixe-me ir, não te devo nada e meu tempo está se esgotando, não me atrapalhe. (levanta-se, os suicidas estão espalhados pelo palco, furando os pulsos)
Odnan: Você deve sim, seu bosta, e vai pagar com sangue puro desta vez, ou não deixarei você partir para a sua “busca” entendeu? (dá outro soco e Carlos cai novamente)
Carlos: Entendi, o que você quer para me deixar partir?
Odnan: Vinte gotas (e dá um espinho para Carlos, que fura o pulso e despeja seu sangue na garrafa)
Carlos: Pronto, aí está, agora me deixe partir.
Odnan: É claro. (Dá vários chutes nele e cospe) Até a próxima visita, suicida. (ri)
Carlos: (levanta-se com dificuldade, e o sexto grito é ouvido: Ana, Ana...) Não... Ana... (cai de joelhos e chora com o rosto entre as mãos) Ana... Não, não...
Ana: Porque chora, meu amor?
Carlos: Ana? Conseguiu fugir das garras de Ehflonn, meu amor?
Ana: Não Carlos, não existe Ehflonn, não existe esse mundo nem todas essas pessoas, é tudo fruto de sua mente desesperada. Eu estou morta, Carlos, e nada poderá mudar essa situação, meu tempo na Terra acabou, mas o seu não. Você se encontra neste momento em uma cama de hospital, em coma causado pelo tiro que você deu em você mesmo.
Você optou por prolongar o sonho que você teve com este mundo e com todos esses personagens, meu querido, tudo o que você viveu aqui foi uma abstração da realidade moldada por sua vontade. Ehflonn é o personagem de um livro que você leu e, inconscientemente, você quis transformar sua vida em uma estória, mas a vida real não é.
Agora você precisa acordar, querido, e seguir em frente, como disse o doutor Ramos em sua terapia, a vida continua e coisas boas acontecerão. Volte e espere sua hora chegar, não desperdice sua chance tentando mudar a vontade de Deus, pois você poderá se distanciar de mim por muito mais tempo, meu amor, vá.
(apagam-se as luzes. Após alguns momentos acende-se um refletor no meio do palco onde se vê um divã onde Carlos encontra-se e, sentado em uma cadeira, o psicólogo-narrador)
Psicólogo: Você melhorou bastante, Carlos, é bom ver isso.
Carlos: Aprendi muito com o senhor e com os acontecimentos durante o coma. Gostaria de ler algo que escrevi para o senhor ouvir.
Psicólogo: Sinta-se à vontade.
Carlos: Quando as lágrimas não pesarem mais sua voz /como tantas vezes, e seu sorriso puder transpor/as nuvens desse até então duradouro temporal,/quando suas mãos sentirem a brisa carinhosa da superfície desse lamaçal voraz que por tanto tempo o sufocou/ocultando as cores da vida de várias vidas com seus momentos diferentes.
Quando tudo se tornar passado já nem lembrado/e seus calos sumirem sem deixar vestígios nem ruídos/e o sol brilhar como se nunca tivesse se posto/após a beleza do azul e do branco sem horizontes.
Quando sentir que ainda é quem sempre foi/e puder caminhar novamente sem correntes e âncoras/de náufragos após a neblina da incerteza de poder,/quando chegar esse dia – tão certo quanto a morte - /e sentir que ainda vive com a mesma vida daqueles/que não desistiram jamais de buscar sem nem saber o quê,/apenas com o rumo dos passos, não se esqueça então de viver o agora como nunca,/ pois nunca mais você poderá viver o agora.
(Enquanto ele lê passa-se um filme em um telão atrás do palco, com cenas da vida de Carlos, e quando ele termina, o final do filme é a recuperação dele. Depois aparece uma foto dele com Ana.)

FIM

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